Chamaram-lhe a Miúda do
Sorriso nº 33 porque, quando sorria, de dentro da sua boca saiam 33 pérolas
perfeitas que iluminavam o espaço com a força electrica de 33 mil holofotes.
Quem lhe deu este nome foi a Miúda dos Olhos de Raio-X, que se chamava assim pois
conseguia ver além do óbvio.
Quando se econtraram pela
segunda vez, estas duas nunca mais se largaram. Quando se olharam, reconheceram
uma na outra o reflexo que nos devolve os espelho que reflecte o inverso. Eram
as duas a mesma pessoa sendo pessoas diferentes, algo que só acontece no mundo
do maravilhoso que apenas existe quando a 33 e a Raio-X se juntam.
Como acontece com a
maioria dos seres que completam dezoito vezes a volta ao Sol, 33 e Raio-X ingressaram
na Instituição Nacional de Unificação da Teoria Intelectual e Laboral, onde, no
final de grandes provas, testes e exames, lhes emitiam um Certificado de Ser
Pensante.
Na I.N.U.T.I.L. havia um intercâmbio cultural
muito grande. Lá estudavam pessoas de todas as épocas, cidades, países e
planetas.
33 e Raio-X ficaram
fascinadas com tamanha variedade, com gente tão diversa, de tão longe quer no
espaço e quer no tempo: uma rapariga do século XVIII, de luvas, sombrinha e
retícula; uma senhora do país das alergias, que à força dos anti-histaminicos
adormecia nas aulas; um rapaz que tinha um lagar na cabeça e que, à conta disso,
do seu cabelo escorria azeite; ...
As duas amigas viviam
felizes entre o fascínio de devorar o que havia para aprender e a leveza com
que a sua amizade se ia unificando à medida que descobriam todos os nós em que
as suas vidas se atavam. Muitas vezes se assustavam com as coincidências das
suas existências que só se cruzaram na I.N.U.T.I.L., como por exemplo o facto
de os seus nomes verdadeiros serem exactamente a mesma harmonia apenas com uma
nota musical de diferença, ou então de terem nascido separadas apenas por dois
dias, dois meses e duas freguesias.
Depois de algumas semanas
a estudar na I.N.U.T.I.L chegaram à conclusão que lá trabalhavam dois tipos de
professores: os Professores Gravador que só ensinavam aquilo que outros já lhes
tinham ensinado e que tinha sido ensinado anteriormente por outros, passando a
cassete de professor em professor; e os Professores Exploradores que lhes
contavam sobre povos longínquos e os seus costumes estranhos, sobre poetas,
sobre seres fantásticos, sobre deuses e musas falecidos. E das gargantas destes
professores fluía um adubo supra especial que fazia com que as moléculas
pensantes dos seus alunos se reproduzissem como coelhos de líbido febril.
Um desses Professores
Exploradores reparou na estranheza que unia a 33 e a Raio-X e depois de as
observar debaixo da sua credibilidade científica descobriu a razão desta união
fantástica: eram gémeas siamesas, mas de úteros diferentes.
Viviam alegres e contentes
estas irmãs de mães distintas. Por vezes, a sua alegria era interrompida pelo
Doutor Problema que as perseguia nos corredores da I.N.U.T.I.L. com enigmas
esfíngicos na esperança de travar esta existência açucarada das duas estudantes.
Mas Raio-X e 33, como duas cabeças pensantes num só corpo, rapidamente
encontravam a solução da charada e fugiam do hálito a mofo do Doutor Problema.
Muitas vezes, esse hálito
sentia-se por todo o edifício onde estudavam e esbofeteava o rosto dos estudantes
com aquele sopro abafado e doentio. Nestes dias, Raio-X e 33 sentiam-se
sufocar. Escapavam então para o Jardim Suspenso Por Cima do Rio, para respirar
e pensar melhor, e onde sempre aprendiam mais que nas aulas dos Professores
Gravador.
Nesse jardim, deitadas na
relva e de umbigos a apontar para o Sol, falavam das suas vidas douradas, do
que sonhavam com os olhos abertos, do livros que liam emprestados pelas
estantes da I.N.U.T.I.L. ou, na maioria das vezes, enumeravam as pessoas que
iam deixando entrar nos seus corações de portas escancaradas que elas não
sabiam fechar.
Como todas as pessoas que
têm a vida temperada a mel e canela, 33 e Raio-X achavam que toda a gente com
quem se cruzavam via a vida através do mesmo vitral colorido e trazia no sangue
a mesma bonomia que as caracterizava desde o berço. Só o tempo lhes iria
ensinar que não.
Encantavam-se com
trovadores e saltimbancos vindos de longe, com os olhos cobertos por vendas de
ternura e os lábios barrados a beijos de torrões de Alicante.
A Miúda do Sorriso 33 uma
vez foi hipnotizada por um nómada de tez morena. Mas, como nunca o conseguiu
agarrar pois este não parava quieto no mesmo sítio mais de dois segundos,
entristeceu-se. Durante um Verão as suas pérolas raramente sairam da boca para
iluminar os dias com a sua luz radiosa.
Quando isto acontecia, a
Miúda dos Olhos de Raio-X desesperava-se. Embora soubesse que o seu coração estava
a todo o momento com a 33, não podiam estar sempre lado a lado. E um arado
lavrava-lhe o peito ao imaginar o mar que a 33 devia derramar pelos olhos. O
tempo acabava por curar a mágoa, como o melhor dos bálsamos.
Raio-X perdeu, também, um
pouco da sua essência quando decidiu amarrar a sua vida a alguém a quem ela
chamou de Peter Pan, pois como o habitante da Terra do Nunca este rapaz não
queria crescer.
Passado muito tempo, e
depois de os seus olhos caleidoscópicos se terem embaciado tanto que já nem via
uma formiga a dançar na ponta do seu nariz, Raio-X teve que o deixar ir. A
custo, desamarrou a corda, e o Peter Pan voou para longe, perseguindo a sua
prórpia sombra.
Durante dias passou-lhe
um dilúvio pelos olhos, o que foi bom para limpar a sujidade que se tinha
instalado. E a 33 lá estava a dar-lhe colo e colheradas de caldo de paciência.
Mais encantamentos e
desencantamentos aconteceram com as duas Miúdas, mas iam passando com a
laconidade de um eclipse solar.
A Sorriso 33 maravilhou-se alguns dias por um
rapaz que tinha na orelha uma argola por onde saltavam minúsculos cãezinhos acrobatas, mas
estes ladravam e ganiam e não a deixavam dormir; outra vez enamorou-se de um
rapaz que tinha constelações pelo corpo, mas incomodavam-na os milhares de
telescópios apontados na sua direcção quando estava ao seu lado;
Raio-X achou graça a um
rapaz do país do surrealismo, mas perdia sempre as horas a seu lado pois os
relógios liquidificavam-se e escorriam como gelatina, depois deixou-se seduzir
por um outro com Coração de Leão mas que ao seu lado ronronava como um gatinho,
e sentiu-se enganada pela troca de felinos.
Entre amores e desamores,
dias solarengos e aguaceiros nos olhos, viviam os seus dias sempre com a mesma
leveza e alegria a sair-lhes dos poros como vapor de água de uma locomotiva.
Passaram os seus
derradeiros anos na I.N.U.T.I.L. já a sentir saudades daquilo que ainda não
tinham perdido.
Uns tempos depois de já
terem nas mãos os seus Certificados de Seres Pensantes, viram-se separadas pela
mais fortes das forças: a Força das Circunstâncias.
As suas almas, corações e
pensamentos ninguém consegue jamais afastar, mas raras foram as vezes que
estiveram novamente lado a lado. Porém, quando isso acontecia, o Universo era
invadido pela mesma luz e pela mesma melodia que as suas gargalhadas
borbulhantes emanavam e fogos de artifício aconteciam no chão que elas pisavam.
Falam-se a toda a hora em
que uma precisa da outra através dos aviões de papel que enviam com os relatos
dos seus dias menos alegres, agora... E é como se estivessem no mesmo espaço,
pois ambas têm a destreza nos dedos que lhes pemite classificar as emoções com
as palavras mais certas, com as imagens mais vivas impressas num papel.
Da sua história não há um
final de feliz, porque ainda não há um final. Cada uma delas tem na pontas dos
dedos a capacidade fervilhante de escrever a sua própria história. Só estão à
espera que o vento sopre a favor do seu barco, depois disso há nelas uma força hercúlea para segurar no leme.
São dois livros, dois
enredos diferentes a serem concluídos pela vontade. Apenas com duas heroínas em
comum: A Miúda do Sorriso 33 e A Miúda dos Olhos de Raio-X.