25.11.14

A aristeia do livro e do leitor



Um livro não deve ser fácil. É um desafio e deve deixar o seu leitor desconfortável. Deve exigir luta e esforço por parte de quem o quer ler. 
O leitor deve esforçar-se por se embrenhar na história, como quem sobe uma longa escada íngreme esperando contemplar a vista da cidade no topo.
Um livro não pode ser fácil. As coisas fáceis não nos ficam na memória, não ganham no nosso percurso pessoal o título de conquista.
O exercício da leitura existe para ser desconfortável. Primeiro pelo objeto do livro na nossa mão: as primeiras páginas de uma história que queremos desbravar tendem a fechar-se pela força da capa que ainda não está quebrada; o corpo, o braços, o pescoço, os olhos doem à medida que as folhas avançam. São necessárias pausas, mas o livro obriga a que o leitor volte, caso contrário o leitor é um derrotado. 
O livro não é para ser fácil. Um livro provoca uma procura constante pela posição correta. Força uma batalha permanente por segurar as páginas por ler e, aos poucos, as páginas já lidas.
O leitor tem de se tornar um guerrilheiro: primeiro luta para focar a sua atenção, por manter a sua concentração naquele espaço de mancha útil, luta contra o barulho e contra a presença dos outros. E no meio, quer do livro quer da história que já o agarrou, luta contra a sua própria curiosidade de avançar páginas e desvendar uns parágrafos do final.
Um livro não é fácil. Tem o espírito de um animal selvagem que devemos domar, mas depois da briga, depois do desconforto e da luta, depois do volume de páginas que seguramos com a mão direita estar seguro entre os dedos da mão esquerda o livro cumpre-se e multiplica-se. Um leitor que travou a batalha até ao fim é a aristeia do livro e o livro lido é a aristeia do leitor.
A história que mora no livro que leu duplicou e mora agora nele também. Existe na sua cabeça como uma referência, como uma lição e faz parte agora da sua história.
Uma estante de uma casa é uma vitrine de medalhas de guerras travadas contra nós mesmos. Os livros que lá vivem são marcos dos momentos em que os nós e os nossos olhos deixamos de ver além para ver para dentro.

30.1.14

Estômago


Disse-me o Avelino, uma vez durante um jogo dos juvenis, que não há nada mais bonito do que uma fêvera a grelhar na brasa. E continuou:

- É todo o conjunto: a antecipação do sabor na boca, os estalidos que ela dá enquanto cozinha… Repara… Sabes quando estás com tanta fome que o estômago ameaça morder-se por dentro? Não é apetite! Mas aquela fome que dói cá dentro? Agora imagina-te com essa fome de dois dias, como eu tinha muitas vezes quando era um puto, ainda mais novo que esses que aí correm no campo. Lembro-me de passar lá em baixo ao pé do rio, passei junto às grades da casa do juiz e aquele cheirinho de fêveras a grelhar entrou-me pelo nariz acima. Agarrei-me às grades como um condenado. Ao fundo do jardim, um homem de calções à inglesa tinha fêveras e entrecosto a grelhar na brasa. Juro-te que tive que segurar a saliva. Por momentos devo ter alucinado com a fome… Senti um naco de pão entre as mãos, ao nível dos olhos. Senti-lhe mesmo a farinha nas pontas dos dedos! E eu a abrir a boca devagarinho porque doía, como se a boca e os dentes tivessem enferrujado por falta de uso. O pão ali à frente dos olhos e a fêvera a espreitar de lá de dentro. Bem passada como eu gosto. Com aquelas riscas acastanhadas marcadas na carne esbranquiçada, o molho a escorrer-me palma abaixo. Trinquei em seco e doeram-me os dentes da frente. Cheirei os dedos à procura de vestígios da fêvera, mas só senti o cheiro a laranja das cascas que encontrei num muro e pus-me a roer. Estava já para sair dali quando vem um miúdo aos saltinhos pelo jardim, de uniforme de colégio, com um pão saloio entre as mãos. Fiquei a olhar para ele, a vê-lo aproximar-se de mim. Olhou-me debaixo, com o nariz muito aguçado. Ainda lhe disse: dás-me um bocado? E apontei para o pão para não haver dúvidas. Ele, sem tirar os olhos de mim, mordeu o pão e abriu a mão que o segurava, deixou-o cair na terra do jardim. Desatou a correr e entrou na casa. Ainda me espremi todo por entre as grades a tentar chegar-lhe, mas estava muito longe. Quando fui para a tropa, sempre que recebia, ia comer uma bifana ao café lá da terra. Mas nunca me esqueci daquele episódio e sempre que vejo uma fêvera a grelhar comovo-me. Aquele pequeno, o que fez foi maldade… Há maldade em toda a gente, mesmo nas crianças pequenas… E estes gajos que nunca mais marcam? Ainda por cima a jogar em casa!

Fiquei alheado do jogo, a pensar no que disse o Avelino. Pensei na casa junto ao rio, nos jardins à volta, no portão com o batente em forma de punho fechado cheios de ferrugem, agora. Lembro-me de correr naqueles jardins, e de ir ao rio nadar no verão com o meu avô. Não me lembro do episódio do pão, mas sinto uma vergonha aflitiva na garganta e uma vontade muito forte de chorar. Não respondi ao Avelino. Nunca soube o que é o estômago a morder-se por dentro, nem a fome de dois dias.

- Deixe lá o jogo Avelino. Vamos ali à tasca comer uma bifana. Esta pago eu.

16.7.12

Poesia e ventrículos

Disse a um cardiologista que o amava. Disse, como quem declama um poema, que o carrego já dentro do meu coração. Ele olhou-me, analítico, e constatou que eram tudo coisas da minha cabeça.

11.7.12

Sorriso 33 e Raio-X


Chamaram-lhe a Miúda do Sorriso nº 33 porque, quando sorria, de dentro da sua boca saiam 33 pérolas perfeitas que iluminavam o espaço com a força electrica de 33 mil holofotes. Quem lhe deu este nome foi a Miúda dos Olhos de Raio-X, que se chamava assim pois conseguia ver além do óbvio.

Quando se econtraram pela segunda vez, estas duas nunca mais se largaram. Quando se olharam, reconheceram uma na outra o reflexo que nos devolve os espelho que reflecte o inverso. Eram as duas a mesma pessoa sendo pessoas diferentes, algo que só acontece no mundo do maravilhoso que apenas existe quando a 33 e a Raio-X se juntam.

Como acontece com a maioria dos seres que completam dezoito vezes a volta ao Sol, 33 e Raio-X ingressaram na Instituição Nacional de Unificação da Teoria Intelectual e Laboral, onde, no final de grandes provas, testes e exames, lhes emitiam um Certificado de Ser Pensante.
Na  I.N.U.T.I.L. havia um intercâmbio cultural muito grande. Lá estudavam pessoas de todas as épocas, cidades, países e planetas.

33 e Raio-X ficaram fascinadas com tamanha variedade, com gente tão diversa, de tão longe quer no espaço e quer no tempo: uma rapariga do século XVIII, de luvas, sombrinha e retícula; uma senhora do país das alergias, que à força dos anti-histaminicos adormecia nas aulas; um rapaz que tinha um lagar na cabeça e que, à conta disso, do seu cabelo escorria azeite; ...

As duas amigas viviam felizes entre o fascínio de devorar o que havia para aprender e a leveza com que a sua amizade se ia unificando à medida que descobriam todos os nós em que as suas vidas se atavam. Muitas vezes se assustavam com as coincidências das suas existências que só se cruzaram na I.N.U.T.I.L., como por exemplo o facto de os seus nomes verdadeiros serem exactamente a mesma harmonia apenas com uma nota musical de diferença, ou então de terem nascido separadas apenas por dois dias, dois meses e duas freguesias.

Depois de algumas semanas a estudar na I.N.U.T.I.L chegaram à conclusão que lá trabalhavam dois tipos de professores: os Professores Gravador que só ensinavam aquilo que outros já lhes tinham ensinado e que tinha sido ensinado anteriormente por outros, passando a cassete de professor em professor; e os Professores Exploradores que lhes contavam sobre povos longínquos e os seus costumes estranhos, sobre poetas, sobre seres fantásticos, sobre deuses e musas falecidos. E das gargantas destes professores fluía um adubo supra especial que fazia com que as moléculas pensantes dos seus alunos se reproduzissem como coelhos de líbido febril.

Um desses Professores Exploradores reparou na estranheza que unia a 33 e a Raio-X e depois de as observar debaixo da sua credibilidade científica descobriu a razão desta união fantástica: eram gémeas siamesas, mas de úteros diferentes.

Viviam alegres e contentes estas irmãs de mães distintas. Por vezes, a sua alegria era interrompida pelo Doutor Problema que as perseguia nos corredores da I.N.U.T.I.L. com enigmas esfíngicos na esperança de travar esta existência açucarada das duas estudantes. Mas Raio-X e 33, como duas cabeças pensantes num só corpo, rapidamente encontravam a solução da charada e fugiam do hálito a mofo do Doutor Problema.
Muitas vezes, esse hálito sentia-se por todo o edifício onde estudavam e esbofeteava o rosto dos estudantes com aquele sopro abafado e doentio. Nestes dias, Raio-X e 33 sentiam-se sufocar. Escapavam então para o Jardim Suspenso Por Cima do Rio, para respirar e pensar melhor, e onde sempre aprendiam mais que nas aulas dos Professores Gravador.

Nesse jardim, deitadas na relva e de umbigos a apontar para o Sol, falavam das suas vidas douradas, do que sonhavam com os olhos abertos, do livros que liam emprestados pelas estantes da I.N.U.T.I.L. ou, na maioria das vezes, enumeravam as pessoas que iam deixando entrar nos seus corações de portas escancaradas que elas não sabiam fechar.

Como todas as pessoas que têm a vida temperada a mel e canela, 33 e Raio-X achavam que toda a gente com quem se cruzavam via a vida através do mesmo vitral colorido e trazia no sangue a mesma bonomia que as caracterizava desde o berço. Só o tempo lhes iria ensinar que não.
Encantavam-se com trovadores e saltimbancos vindos de longe, com os olhos cobertos por vendas de ternura e os lábios barrados a beijos de torrões de Alicante.

A Miúda do Sorriso 33 uma vez foi hipnotizada por um nómada de tez morena. Mas, como nunca o conseguiu agarrar pois este não parava quieto no mesmo sítio mais de dois segundos, entristeceu-se. Durante um Verão as suas pérolas raramente sairam da boca para iluminar os dias com a sua luz radiosa.
Quando isto acontecia, a Miúda dos Olhos de Raio-X desesperava-se. Embora soubesse que o seu coração estava a todo o momento com a 33, não podiam estar sempre lado a lado. E um arado lavrava-lhe o peito ao imaginar o mar que a 33 devia derramar pelos olhos. O tempo acabava por curar a mágoa, como o melhor dos bálsamos.

Raio-X perdeu, também, um pouco da sua essência quando decidiu amarrar a sua vida a alguém a quem ela chamou de Peter Pan, pois como o habitante da Terra do Nunca este rapaz não queria crescer.
Passado muito tempo, e depois de os seus olhos caleidoscópicos se terem embaciado tanto que já nem via uma formiga a dançar na ponta do seu nariz, Raio-X teve que o deixar ir. A custo, desamarrou a corda, e o Peter Pan voou para longe, perseguindo a sua prórpia sombra.
Durante dias passou-lhe um dilúvio pelos olhos, o que foi bom para limpar a sujidade que se tinha instalado. E a 33 lá estava a dar-lhe colo e colheradas de caldo de paciência.
Mais encantamentos e desencantamentos aconteceram com as duas Miúdas, mas iam passando com a laconidade de um eclipse solar.

A Sorriso 33 maravilhou-se alguns dias por um rapaz que tinha na orelha uma argola por onde saltavam minúsculos cãezinhos acrobatas, mas estes ladravam e ganiam e não a deixavam dormir; outra vez enamorou-se de um rapaz que tinha constelações pelo corpo, mas incomodavam-na os milhares de telescópios apontados na sua direcção quando estava ao seu lado;
Raio-X achou graça a um rapaz do país do surrealismo, mas perdia sempre as horas a seu lado pois os relógios liquidificavam-se e escorriam como gelatina, depois deixou-se seduzir por um outro com Coração de Leão mas que ao seu lado ronronava como um gatinho, e sentiu-se enganada pela troca de felinos.
Entre amores e desamores, dias solarengos e aguaceiros nos olhos, viviam os seus dias sempre com a mesma leveza e alegria a sair-lhes dos poros como vapor de água de uma locomotiva.
Passaram os seus derradeiros anos na I.N.U.T.I.L. já a sentir saudades daquilo que ainda não tinham perdido.

Uns tempos depois de já terem nas mãos os seus Certificados de Seres Pensantes, viram-se separadas pela mais fortes das forças: a Força das Circunstâncias.

As suas almas, corações e pensamentos ninguém consegue jamais afastar, mas raras foram as vezes que estiveram novamente lado a lado. Porém, quando isso acontecia, o Universo era invadido pela mesma luz e pela mesma melodia que as suas gargalhadas borbulhantes emanavam e fogos de artifício aconteciam no chão que elas pisavam.

Falam-se a toda a hora em que uma precisa da outra através dos aviões de papel que enviam com os relatos dos seus dias menos alegres, agora... E é como se estivessem no mesmo espaço, pois ambas têm a destreza nos dedos que lhes pemite classificar as emoções com as palavras mais certas, com as imagens mais vivas impressas num papel.

Da sua história não há um final de feliz, porque ainda não há um final. Cada uma delas tem na pontas dos dedos a capacidade fervilhante de escrever a sua própria história. Só estão à espera que o vento sopre a favor do seu barco, depois disso há nelas uma força hercúlea para segurar no leme.
São dois livros, dois enredos diferentes a serem concluídos pela vontade. Apenas com duas heroínas em comum: A Miúda do Sorriso 33 e A Miúda dos Olhos de Raio-X.

22.3.12

O Trapezista

Uma vez namorei um trapezista. Foram horas intensas, de coração entre os dedos, e no peito a percussão de um tambor... Dias e dias a fechar os olhos no triplo salto. 
E ele era perfeito no seu trapézio, os movimentos sincronizados como luas e planetas. As pernas e os braços e os músculos e as células transformadas num líquido que fluía como na estação das chuvas.
Eu não sabia senão olhar para cima. O meu queixo só sabia existir num ângulo obtuso.
Uma vez, no grande final, decidi abrir os olhos para te ver ser quase pássaro. A rede já tinha sido recolhida pelos pescadores de aplausos.
Eu de olhos postos no trapézio à espera que lá pousasses, mas nunca lá chegaste. Só um baque surdo no chão da arena. O pó no ar, como pequenas partículas de um cosmo.

10.7.10

Crash


Uma estrela pousou na cauda do dia. A luz só se via através do manto negro roído pelo tempo.
Os nossos pés estendidos ao longo da estrada que se fazia longa há várias horas.
A casa ao fundo. As mão atadas, a minha com a tua. E no peito uma agulha chamada pressentimento.
A voz calada. O olhar avesso aos olhos. Um rufar de tambores dentro do corpo.
Passei os dias a enviar-te sinais de luzes, não posso mais conter o acidente.

Os meus olhos são varandas com vista para os teus. Mas creio que um arranha-céus se ergue, à velocidade do aço, entre nós.